domingo, 14 de janeiro de 2007

Na fronteira

No informe anual sobre patentes da Organização Mundial da Propriedade Inteletual (OMPI) acho o dado a seguir: em 2004, os residentes nos Estados Unidos solicitaram 185.536 patentes, enquanto isso, no mesmo período 135.196 patentes foram registradas por não-residentes nesse país (onde representam uma proporção de habitantes muito menor).

En la frontera

Ainda que o dato possa ter numerosas explicações, uma leitura possível é que se mudar de lugar e trocar a rutina -cruzar a fronteira-, junto com a necesidade de ir para frente, estimulam a inventiva, a criatividade.

Uma ou duas vezes no ano repasso os artigos de jornal que pouco a pouco amontoei sobre a mesa para considerar, se os guardo definitivamente, ou se os levo ao contêiner de reciclagem de papel. Esta perspectiva temporal de meio ano permite julgar melhor o interesse das notícias ou as crônicas, com o conhecimento do que aconteceu depois, quais foram o desenlace ou as conseqüências.

Às vezes, este jogo coloca na frente dos olhos histórias que acabam tendo algum denominador comum. Nesta oportunidade, a palavra chave poderia ser "a fronteira".

1.- Libération do 1 de agosto de 2006 contava a situação kafkiana das terras entorno do lago Ontário, onde mora a tribu dos Mohawks. Trata-se de uma zona chamada Akwesasne; alguem traçou sobre ela a fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. Akwesasne está dividida em dois e tem moradores que precisam cruzar a alfandega quatro ou cinco vezes ao dia -com as filas correspondentes- para poder fazer seu trabalho. Inclusive tem casas divididas em dois por uma dessas linhas invisíveis, vestígio da ancestral delimitação do território de muitas espécies animais. Um dos afetados comenta, com ironia: "Uma vez discutí com minha esposa em nosso cuarto de Canadá e ela me mandou ir a dormir no quarto dos lado, nos Estados Unidos".

2.- El País do 29 de outubro de 2006 publicou uma reportagem titulada Os meninos esquecidos da lixeira; descreve o povoado povoado ilegal da Cañada Real Galiana, somente a 10 quilômetros do centro de Madri. Falam que na favela moram millar de meninos que não assistem a escola e vivem entre lixo e droga. Essa situação é notícia com destaque nos jornais da Espanha, onde os meninos da rúa quase não existem e tem uma rede de boas escolas públicas gratuitas. Outra fronteira, a da marginalição e a pobreza; essa, não por ser invisível é menos trágica.

3.- A Folha de São Paulo do 25 de agosto de 2006 publicou uma história que parece ter sido escrita pelo Bocaccio no seu Decamerón. João Pereira da Silva (34 anos, raça negra) furtou uma carteira com 10 reais e está na cadeia há quase dois anos. João Pereira da Silva (28 anos, raça branca) roubou 162 reais com uma arma, foi condenado a três anos e meio, ficou seis meses na prenitenciária e fugiu. Os pais dos dois tem os mesmos nomes. "O João negro" cumpre pena do seu homônimo branco; há um ano, um exame datiloscópico comprovou a confusão, mas a situação continua do mesmo jeito. Alguém cruzou a magrinha e ainda mais invisível fronteira da verdade, a realidade cinzenta, a identidade escorregadia.

A vida consiste em fazer de funâmbulo sobre as fronteiras perigosas que os homens traçamos; passar de um território a outro -ou, pelo contrário, conseguir não cruzar a divisória-, com freqüência requer a habilidade dos equilibristas.


Trapezistas do espetáculo El Gegant dels 7 Mars (Fòrum 2004 - Barcelona)



[Tradução do autor. Me desculpe os erros]

Enlaces de interesse:
Estadísticas sobre patentes de la OMPI
Akwesasne
Primeras naciones de Quebec
Los niños olvidados de Madrid
Bocaccio
'João negro' cumpre pena de 'João branco'
Fòrum de les Cultures - 2004

Nenhum comentário: